quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Da invalidade dos contratos jurídicos que tenham como objeto de aquisição a alma humana



Os contratos entre humanos e demônios partem de um pressuposto em desequilíbrio: como se pode trocar um bem terreno, limitado por nossa vida finita, por um mal infinito, sem limitação, dada nossa alma imortal?



Amélia estivera, nos últimos dias, remoendo uma vida que podia ter sido, ou que podia ser a sua. Não que estivesse absolutamente infeliz com a sua vida, mas a possibilidade de viver mil outras vidas era, certamente, mais excitante do que a vida pequeno-burguesa que vinha levando.

Num desses dias de devaneios, fugindo constantemente do trabalho que deveria fazer, ela ouviu uma canção. Uma doce canção... Ela pôs-se a ouvi-la mais e mais. E, no final do dia, a noite já abocanhando a claridade, ela sentiu que tinha companhia.

A discussão não foi rápida. Ela hesitou. A questão toda é que o oferecido era querido por ela. Mas, e o preço a ser pago? De repente, a possibilidade do inexorável a atravessou e depositou-se, toda, em seu cérebro. Ah, mas, e se ela pudesse? Seria maximamente bom. Tão bom, tão diferente, tão exótico e tão outra parte dela. Aquela parte frustrada e abandonada por tantos anos, de repente, seria tão satisfeita. Ela não podia ignorar a força que esse imaginar, daquilo que podia ser, ainda existia nela.

E se ela pudesse ser outra pessoa, ou melhor, a pessoa que podia ter sido? E, ainda se pudesse ser a pessoa que podia ter sido e, ainda, pudesse usufruir de um sonho – dado que a possibilidade que ela desejava desfrutar com essa nova vida não passava de um devaneio seu – ela não trocaria por qualquer coisa?

Sim, qualquer coisa, ela pensou. A oferta era tentadora: pegue agora e comece a viver o seu Céu na Terra. Fama, reconhecimento, uma linda história de amor – com conflitos, porque ela não era tão tola – e a oportunidade de fazer o seu melhor, ou aquilo que ela, agora, acreditava ser o seu melhor, mesmo não tendo nenhuma prova disso, além de sua própria vontade e intuição.

A música continuava e a embalava, ela sentia como se estivessem ali, seduzindo-a com a proposta, tão tentadora, tão suave e tão reconfortante, diante da realidade.

Como sempre, para uma pessoa um tanto mão de vaca como ela, o problema estava no preço. Sim, porque trocar uma vida finita, mesmo que perfeita, por uma vida infinita de sofrimentos não lhe parecia um bom negócio.

Ela mostrou o seu ponto. O silêncio prosseguia, quebrado pela música e pela tentação que tomava sua mente e seu coração. Ela ironizou os termos. Silêncio. Ela continuava tentada, mesmo tendo feito o cálculo prudencial. Ela SABIA que não havia vantagem real. Mesmo assim, seus sonhos realizados continuavam a perturbá-la. E, se... Não. Definitivamente, não. Não valia a pena. Ela argumentou novamente: quem sabe um pequeno período no Inferno. Não, uma vez lá, de lá não se sai.

Ela debochou da oferta. Desfez dos termos. “Irredutíveis, esse negociadores”, pensou Amélia. Então, a teimosia que é uma de suas características se impôs: “Se vocês não recuam, não recuo nos meus termos!”. Ela não troca o finito, mesmo ruim, por um infinito certamente ruim. Não troca a certeza da danação eterna pela certeza de uma vida limitada feliz e pela incerteza da beatitude. Pois, ela podia sofrer aqui, mas, quem sabe, tivesse oportunidade de viver feliz, mesmo que tivesse de pagar uma pequena multa no Purgatório?

“Vocês estão me oferecendo um acordo muito desigual, não tem vergonha de ferir a minha inteligência?!” – exasperou-se Amélia.

Com isso, a sensação da tentação esvaiu-se de seu coração. A música já não soava da mesma maneira acalentadora. Não haveria mais trato para ela. Mas, quem sabe, ganhara o respeito de Lúcifer?

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